Um Mergulho Gonzo nos Anos de Ouro do Colecionismo
O Brasil das Revistas em Quadrinhos Importadas: Um Mergulho Gonzo nos Anos de Ouro do Colecionismo
É quase impossível imaginar a molecada dos anos 1970 e 80 se aglomerando no aeroporto, aguardando a última edição da Creepy ou da Vampirella, muito menos um nerd desesperado para conseguir o catálogo da Mile High Comics sem o conforto de um clique ou a mágica de um cartão internacional. Mas era assim que funcionava o submundo dos quadrinhos importados no Brasil – um meio caminho entre a devoção e o desespero, com uma pitada de sacrifício econômico. Num país sem a estrutura de quadrinhos importados, um colecionador era, antes de mais nada, um guerreiro nerd.
Antes de mergulhar no presente, eu precisava de uma testemunha da época. Quem melhor do que meu amigo Thales, fundador da Metrópolis Quadrinhos? Um dos veteranos da cena underground dos quadrinhos, Thales começou sua jornada ainda no fim dos anos 1970. Entre mesadas que evaporavam e revistas com selos carimbados em cruzeiros, ele desbravou um mundo que hoje soa como folclore.
A Era Pré-Devir: Um Mundo Sem Logística
Antes que a Devir assumisse seu papel de salvar os leitores brasileiros, as opções eram mínimas e caras. Segundo Thales, "Eu comprava minhas revistas lá no jornaleiro do Santos Dumont. Tinha carimbo de preço atrás, nada organizado. Simplesmente mandavam para o jornaleiro, e ele carimbava segundo o câmbio."
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Aeroporto Santos Dumont – RJ – reprodução |
O jornaleiro era praticamente um contrabandista cultural. Ali, entre voos e conexões, surgia um submundo de quadrinhos americanos trazidos como souvenirs exóticos. Era quase como contrabandear arte. Perguntei sobre a origem das revistas e ele não sabia se era a Siciliano ou algum outro fornecedor obscuro. Para ele, a única coisa que importava era a sensação de segurar um quadrinho que nunca veria a luz das bancas brasileiras.
A Inflação que Roubava a Mesada
"Todo
mês, as revistas encareciam", ele conta. "Comecei comprando Creepy,
depois adicionei a Vampirella e a Eerie, Vampirella e
tinham coisas da Marvel e da DC lá. A primeira que comprei foi da Marvel, eu
peguei lá A Máquina do Tempo, de H. G. Hells, quadrinizada. O dinheiro que
sobrava da escola, eu ia lá no aeroporto comprava mais. Só que todo mês aquelas
revistas não paravam de aumentar, a inflação. Eu comecei comprando Creepy,
Eerie, Vampirella e Famous
Monsters of Filmland. A cada mês, a inflação comia uma revista do meu carrinho. Aí a
primeira a sambar foi a Famous Monsters, todas revistas que eu pegava eram da
Warren. Aí no final era impossível, não dá para pegar mais nada, porque ou
pegava as nacionais, a minha mesada não acompanhava. "
Foi a primeira vez que percebi: o colecionador brasileiro era um sobrevivente da inflação, um artista no manejo do cruzeiro. Enquanto os americanos debatiam quem era o melhor entre a Marvel e a DC, o brasileiro debatia quantas revistas a inflação permitiria comprar naquele mês.
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A Máquina do Tempo - Marvel Comics |
A Mile High Comics e a Revolução do Catálogo
Foi então que Thales se deparou com o catálogo da Mile High Comics: "Foi Gibi Club, lá eu descobri a Mile High Comics. O catálogo da Mile High Comics era um livro, coisa pra caramba.” A logística era um quebra-cabeça de opções. Existiam opções de pagamento para receber era via marítima, uma espera quase interminável, pagamento via fax, o método mais caro e rápido da época – para os que estavam dispostos a sacrificar um rim pelo privilégio de uma leitura antecipada.
Ainda assim, mesmo com todos os desafios, Thales e seu amigo Marcos, bancário, juntavam os pedidos e transferiam o dinheiro para os EUA. Era como abrir uma agência secreta de importação. Mas o banco, claro, não deixou barato. O gerente do Marcos desconfiou: “Você ganha X. Como manda tanto dinheiro para o exterior?” E lá se foi o esquema. Era isso ou arriscar perder o emprego.
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Catalogo Mile High Comics |
O Dia da Glória: New York, Big Apple Comics e o Peso das Malas
Quando o Thales finalmente viajou aos EUA, ele não pensou duas vezes. Não trouxe souvenirs, não trouxe camisetas, só trouxe... quadrinhos. A Big Apple Comics o recebeu de braços abertos – e com um estoque que quase o fez desmaiar. 'aí falei Pô, rapaz, você não tem revista da Warren, não?' 'Qual você quer?' Mostrei minha lista. Aí ele falou assim: 'volta aí, tal dia que hoje não é dia de vender a número atrasado, é só lançamento.' falei pra ele que eu era do Brasil e que voltaria no dia seguinte, que no dia de comprar atrasadas eu não estaria no Estado Unidos. Daí ele falou 'tá bom então, me dá a tua lista aí.'
Thales estava em um frenesi, a adrenalina pulsando em suas veias, quando se lembrou de um detalhe crucial. "A loja tinha a edição que faltava na minha coleção de Vampirella. A número três. A mais rara de todas. Por que é a mais rara? Não faço ideia. Mas, voltando no tempo, como consegui a coleção de Vampirella? Comprei de um cara do Guarujá, através da seção de cartas das revistas Calafrio e Terror, da editora D’Arte. Esse cara, que escrevia e era responsável pela seção de cartas, entrou em contato comigo oferecendo a coleção. Ele precisava reformar o banheiro. Eu não tinha quase nada de Vampirella, só uma edição que comprei no aeroporto Santos Dumont. O cara tinha tudo, exceto a número três. Tudo novinho em folha. Ele disse: ‘Olha, faço um preço baixo por cada uma.’ Eu disse: ‘Não posso pagar à vista, estou viajando e todo meu dinheiro está em dólares.’ Propus enviar três cheques e, quando ele os descontasse, me enviaria as revistas. Tudo na base da confiança. E sabe o que ele fez? Sem descontar o primeiro cheque, ele me mandou tudo. Não só os números que eu não tinha, mas também os que eu já tinha. Mandei os cheques pelo correio e ele os depositou certinho todo mês. Reinaldo de Oliveira, o nome dele. Ele ainda disse: ‘Estou pensando em vender minha coleção de Monstro do Pântano, da época de Lein Wein e Bernie Wrightson.’ Mas ele desistiu. Tive que comprar em Nova Iorque depois."
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Creepy, Eerie, Vampirella e Famous Monsters |
Uma pausa no bate-papo, Thales não fazia ideia de quem era Reinaldo de Oliveira. Editor, produtor gráfico e roteirista. Com Álvaro de Moya, Jayme Cortez, Syllas Roberg e Miguel Penteado, foi protagonista da primeira exposição internacional de quadrinhos do mundo, em 1951. No ano seguinte, trocou a La Selva pela Abril, a convite de Claudio de Souza, com a promessa de carteira assinada. Trabalhou também na editora D’Arte e foi colaborador do livro “Shazam!”, de Álvaro de Moya. Muitos de seus roteiros na D’Arte foram assinados com o pseudônimo Jota Laerte.
Pois é, uma das lendas dos quadrinhos nacionais fez negócio com Thales.
Tráfico Cultural dos Quadrinhos
E quando Thales encontrou finalmente a última edição de Vampirella que faltava, ele teve que fazer um acordo mais ousado que qualquer contrato internacional. “Quanto custava a edição três da Vampirella? Vamos supor, se as outras custavam 1 dólar, ele queria 20 dólares por essa. Naquela época, era extremamente rara, não sei por quê. Mas como eu comprei outras coisas, ele negociou um preço bem mais baixo pra mim. Ainda disse: ‘Escolha um pôster’. Eu tinha um pôster da capa do Quarteto Fantástico número um, e falei: ‘Quero aquele.’ O cara me deu o pôster e disse: ‘Leva esse aqui e esse aqui também”. Saí de lá carregado, pegamos um táxi de volta para o hotel. Foi uma das lojas onde comprei bastante coisa.
Quando voltei ao Brasil a mala parecia uma loja ambulante de revistas. O Marcos passou lá em casa e ficou louco: ‘Não trouxe nada pra mim?’ Claro que não! Ele não deu dinheiro, nem lista”. E, pela primeira vez, Thales experimentou o prazer de comprar quadrinhos a preço de banana.
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Uma mala cheia de gibis - reprodução |
De Volta ao Futuro: Uma Nova Geração de Leitores
Hoje, o cenário é bem diferente. A Baú das HQs e a Comics & Signatures tornaram a cultura dos quadrinhos importados mais acessível. Em vez de viagens ao aeroporto, temos cartões internacionais e sites especializados. A Panini pode até não acompanhar tudo, mas os novos colecionadores têm acesso a um universo que antes só existia para a elite dos malucos por quadrinhos.
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Thales - fundador da Metrópolis Quadrinhos |
A
nostalgia é forte,
mas Thales e eu sabemos: essa era não volta. No entanto, fica a pergunta para
quem viveu essa aventura: valeu a pena? Para ele e para mim, o grande barato
sempre foi o rito, a luta, e não apenas o quadrinho em si. E para você?
Quer visitar a Metrópolis Quadrinhos no Rio de Janeiro? Eles ficam na rua Dias da Cruz, 203 - Loja 11, no Méier.